Até quando vou me submeter a isso?

Confesso que venho me enrolando para escrever o post de hoje. A obra sobre a qual vou falar foi, provavelmente, a mais difícil e dolorida de fazer até agora e às vezes tenho receio de pensar muito sobre ela e reviver algumas das dores que me levaram a essa peça. Apesar desse processo ter me permitido absorver, reelaborar e até expurgar muita coisa, algumas feridas ainda são bastante ardidas. "Até quando vou me submeter a isso?" encabeça minhas reflexões e experimentações sobre cicatrização (já falei sobre isso em outros posts). 

Vinha com a vontade de testar diferentes suportes para bordar e teimei que seria interessante bordar em argila, justamente por ser um material que remete à pele. Nessa época, em outubro do ano passado, eu vinha entendendo muitas questões que me perturbavam e em uma sessão de análise surgiram essas frases: "Até quando me submeter a certos absurdos? Até quando me expor a situações que claramente eu não preciso viver?". "Acho que encontrei a frase para peça de argila que eu quero fazer", escrevi no caderno nesse dia. 

Decidi fazer uma peça que fosse como uma placa do tamanho do meu colo e escrever nela a frase, como feridas, e então bordar suturas. 

Comecei aos poucos fazendo algumas experimentações, que no começo deram muito errado.

Primeiro a questão foi achar uma agulha curva, para fazer as voltas das suturas e foi impressionantemente difícil encontrar uma agulha curva nessa cidade ou nas casas de conhecidas. Depois de muito plantão no armarinho, consegui as agulhas, mas então me dei conta que a argila rachava, quebrava, não permitia nada do que eu pretendia. 

Seria preciso encontrar outro material, que remetesse a sensação de pele, e me sugeriram cerâmica fria, material muito versátil e que aceita tintas muito bem, então poderia deixá-lo da cor da minha pele. E o teste deu super certo!

teste em cerâmica fria


Determinados os materiais, percebi que precisa resumir as frases da sessão de análise não só para sintetizar o pensamento mas também para universalizá-lo, tornando mais fácil que outras pessoas pudessem se identificar, independente da situação a qual não querem mais se submeter. Eis que cheguei a "Até quando vou me submeter a isso?" e em março desse ano coloquei a mão na massa. 

Comecei misturando tintas para chegar num tom que se aproximasse do da minha pele.



Medi o tamanho do meu colo/peito numa folha sulfite e, depois de criar uma estrutura com papel higiênico e fita crepe para dar volume, comecei a envolver a peça com a cerâmica fria. Nesse estágio, apelidei o projeto de "pele" e estava completamente intrigada porque o ar que ficou entre o papel e a cerâmica, dava a sensação que a peça respirava. Aos poucos parecia que ela criava vida e, sinceramente, foi assim que senti durante todo o processo.





Fiz algumas camadas de cerâmica fria e ia intercalando os lados, para que um não ficasse muito mais fino que o outro e rachasse. 

Na primeira tentativa, fiz palavras muito grandes e precisei desmanchar o primeiro "até". Reutilizei a cerâmica já pintada, por isso essa camada cor de rosa, que deixou "pele" com um aspecto de pedaço de carne, o que me fascinou e assustou. 



 

Até aqui eu estava bem receosa sobre a parte das suturas, porque achava que teria que fazer as feridas e o bordado enquanto a cerâmica ainda estivesse molhada. Por isso meu plano era fazer uma palavra de cada vez, mas depois de fazer isso em "até", percebi que a cerâmica e tinta molhadas borravam toda a linha e se tornavam muito mais instáveis e difíceis de trabalhar. Escrevi no meu caderno que "bordar na pele molhada é muito mais complicado e intenso, é como se ela respirasse, se mexesse".

Acho interessante destacar que do começo do processo até aqui se passaram alguns dias, alguns, inclusive, sem que eu trabalhasse na peça, mas a partir daqui foram uns três dias trabalhando meio direto, pra não deixar a cerâmica secar, já que a massa úmida é mais flexível e permitiria mais movimentos com a agulha. Pra facilitar minha vida e ganhar mais tempo, de vez em quando eu espirrava água em tudo. Compartilharei essa parte só pelas fotos, que acredito que ficará mais fácil de entender (documentei muito esse processo, uhuu):


fiz as marcações com um estilete

com o estilete e um palito de unha, fui abrindo
as feridas e tirando o excesso de massa

com um pincel bem fino e o palito, pintei os interiores das letras

pintei o restante com a tinta que batia com meu tom de pele.


Nesse ponto, pensei que fazer os furos (com a tal da agulha curva) primeiro e deixar secar um pouquinho facilitaria a "sutura" e também sujaria menos a linha. Aqui, apesar de empolgada, eu já estava ficando cansada, portanto fui fazendo os furinhos com calma ao longo do dia e borrifando água pra manter as coisas minimamente úmidas.







Num primeiro momento, eu tinha pensado em misturar a tinta na massa, mas a ideia não deu certo, por isso eu ia pintando conforme ia "esculpindo": se pintasse depois correria o risco de manchar as linhas. Vários retoques foram necessários ao longo do processo, inclusive alguns de tinta vermelha enquanto eu suturava. Se a tinta vermelha marcasse as linhas, tudo bem, não só porque manchariam menos por tudo ser da mesma cor, mas porque acredito que haja coágulos de sangue em algumas suturas.

Trabalhei nas suturas aos poucos, ouvindo Jorge Drexler, Baden Powell, "Debaixo d'água" da Maria Bethânia e "É Tudo pra Ontem", de Emicida (as duas últimas marcaram muito esse momento) e, como a cerâmica fria e as tintas tinham um cheiro muito forte, um cheiro de ferida mesmo, trabalhei de máscara - quase numa piada de mau gosto com as suturas e com o fato bizarro de termos máscaras à disposição em casa.


Para bordar, prendia as linhas com pedacinhos de fita crepe para não puxá-las demais. Conforme avançava, ia colocando pedacinhos de massa bem molhada com um pincel fininho em lugares estratégicos, fechando um pouco alguns furos e prendendo melhor as linhas. No final do processo, a massa estava quase 100% seca e por isso mais quebradiça, portanto esse passo foi essencial. 



a obra finalizada, depois do retoque de tintas, que fiz em várias camadas.

Entre começar os furos e terminar as suturas (e a pintura) se passaram uns dois dias, dias que perdi o sono pensando na pele, de tão intenso que foi esse processo. Durante esses dias eu sentia uma energia absurda, quase como se estivesse drogada. Vivi um nível de concentração e entrega que nunca tinha vivido antes, um nível meio mágico que me fez entender melhor o que é arte e o que é fazer arte: me reconheci e me assumi artista visual. Revivi muita coisa nesse processo também: por mais que a frase inicial tenha surgido de algumas situações específicas, esse projeto me fez olhar para várias outras coisas que me machucaram, me fez entendê-las, respeitá-las e começar a resolver algumas delas. Essa peça marcou o encerramento de um ciclo para o começo de outro, vida-morte-vida, como vinha estudando. Foi o último dos trabalhos idealizados no ano passado, sem muita pesquisa (além da pesquisa interna, claro), o último de uma leva de um "vomitar" do que sentia para poder processava certas coisas. A partir daqui, venho redescobrindo a pesquisa.

Foi o processo mais visceral até agora, o que tirou mais de mim e o que ainda se faz necessário. De tempos em tempos, revisito essa peça e revisito essas dores. Ela me lembra de que essas feridas vão passar e da minha responsabilidade nesse sarar. 

Como sempre, com muito muito carinho e sinceridade,
Lorenza. 


















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