tudo que eu entrego pra terra ela me devolve

Já faz um tempo que venho sentindo falta da materialidade. De colocar os pés no chão, na terra, de sentir o vento e a mudança de temperatura, sentir a matéria nas minhas mãos, sentir meu corpo vivendo tão plenamente quanto ele pode. A pandemia restringe e diminui as experiências que meu corpo estava habituado a ter - e que gosta tanto de ter.

Março e abril, bem o pico da pandemia, foi o período mais difícil pra mim até agora, o mais desesperador e no qual eu mais sentir falta da matéria. Nem sei se faz muito sentido falar isso, se me faço entender, mas vinha lendo muito sobre ancestralidade, sobre a natureza, sobre a terra e a Terra e sentia falta da matéria.

"Tudo que eu entrego pra terra ela me devolve" veio disso. Da vontade de fazer e sentir coisas com minhas mãos, diferentes texturas, temperaturas, pesos, de sentir cheiros e ativar mais meus olhos. Comprei quatro telas no Mercado Livre pra ter suportes pra experimentação, pra brincar um pouco com tinta e foi isso que eu fiz. 

Usei argila; argila verde; açafrão; colorau; canela; tchai massala; um pouquinhozinho de tinta marrom; café; chá de hibisco; sais variados, incluindo pedras de sal de algum lugar do Chile que ganhei de presente; água de cozimento de pinhão, Curitiba, em Tupi-Guarani, significa "terra de muito pinhão"; um tanto do meu sangue menstrual e um fio de cabelo branco meu que tinha caído uns dias antes: eles estão a tempo suficiente na minha cabeça para nascer, crescer e cair. 

Fui diluindo as argilas em água bem quente e trabalhando com paciência, aquela que em outros processos aprendi que é necessária. Fiquei surpresa e feliz de perceber que aquele tecido que não deu certo realmente me ensinou muita coisa e muita coisa que não só foi absorvida mas aplicada. Acho que eu não estar muito bem naquele período, em estar com a energia bem mais baixa ajudou nessa paciência toda, na observação do material, acompanhei como ele se comportava, como secava, como mudava conforme secava. Fui fazendo as camadas aos poucos, respeitando esses tempos, esses processos. Acho que esse foi o maior aprendizado dessa obra. 

Não fiz tantas camadas, acho que em dois ou três dias já me dei por satisfeita, mas a tela demorou uma semana pra secar por completo, definir suas cores, suas formas, suas seguranças e fragilidades. Ela tomou seu tempo pra se conhecer e se entender. 

Depois de seca, ela mudou muito e muitas mudanças eu simplesmente tive que aceitar. Percebi como as partes com mais textura ficaram quebradiças e se desprenderam do suporte. Todos esses meses depois e ainda não sei como resolver isso. Ainda estou sendo paciente com esse quadro e comigo mesma. 

"Tudo que eu entrego pra terra ela me devolve" fica na horizontal no meu escritório, porque ainda não descobri como fazer para que essas partes mais frágeis não se desprendam pra sempre e se desfaçam, pra que não se percam. Talvez um verniz e ignorar a textura e brilho das terras? Talvez colar cada parte mais frágil? Talvez envolvê-la em algum tipo de moldura que proteja? Talvez deixá-la quieta pra sempre? Ainda não sei. 

Essa tela me toca num lugar especial. Gosto disso. 

Como sempre, com carinho,

Lorenza






tela finalizada depois de secar por completo





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