Revisita ao curta "Oma", de Michael Wahrmann

Há alguns anos, durante a faculdade, fui apresentada a "Oma", um vídeo/curta-metragem documental, que muito me encantou e muito me revoltou. Na primeira vez que assisti a esse filme, fiquei tão impactada que logo em seguida me perdi no metro, no caminho que já fazia parte da minha rotina. 

Decidi revisitar o filme e a crítica que na época escrevi sobre ele e fiquei muito surpresa com minha mudança de perspectiva. Acho que muita coisa se resolveu na minha cabeça desde então, entre entender melhor qual caminho e quais valores éticos seguir como artista e processar melhor o longo e lento luto do Alzheimer da minha avó. Sem dúvida, amadureci muito de 2018 pra cá. 

A crítica mais recente escrevi para Revista Desvio e o link está aqui. A crítica de 2018, bem apaixonada, segue abaixo:

    Quando pensei em escrever sobre Oma tinha certeza que escreveria um texto pessoal. Só depois me dei conta de que ele pede por isso, pede para que coloquemos a cabeça e o coração para pensar e para doer, pede uma entrega sincera para que o filme se complete. Oma, de Michael Wahrmann, 2011, foi muito provavelmente o filme mais difícil, mais bonito, mais necessário que já vi em minha vida e, sem dúvida, o mais egoísta.

          Acompanhamos a visita de um neto a Oma, sua avó, já muito debilitada. Ele mora no Brasil, ela na Alemanha. O neto, Michael, filma a casa, a avó, as conversas em planos muito fechados e difíceis de entender. É necessário se acostumar com a linguagem e com o contexto, com a forma como Michael interage com Oma. Não fica claro se Oma tem alguma doença ou se é muito velha e por isso senil.

          Na realidade, acompanhamos visitas e não uma visita e, em cada nova aparição do neto no apartamento, compartilhamos a angústia da imprevisibilidade do estado de Oma naquele dia, daquilo que o neto encontrará e terá de lidar. O filme termina com um plano em que Wahrmann grava a porta do apartamento da avó. Se fosse eu a fazer esse filme e registrar minhas visitas à minha avó, muito provavelmente esse seria o primeiro plano que eu gravaria, como uma espécie de aquecimento pelo que está por vir, pelo que esse realizador-protagonista está prestes a viver, portanto não se sabe com certeza se a ordem das visitas que nos são mostradas tem uma ordem cronológica ou não. Em cada uma, Oma tem uma reação e comportamento diferentes e as pessoas que estão ao seu redor são obrigadas a se adaptar.

          Na primeira visita, Oma parece se dar conta de que tem alguém ali para vê-la apenas no final, ela não parece entender por completo quem é essa pessoa mas fica claro que sente amor por ela, um amor que se demostrada desmedido e desajustado: ela troca de lugar com o neto, ou com a imagem que acredito que tenha do neto naquele momento, vira uma criança angustiada e, na hora de Michael ir embora ela fica até meio desesperada: ela não quer ficar sozinha.

          No segundo encontro, Oma parece estar melhor, parece estar mais atenta e ativa, adulta novamente. Porém, está distante. Não esquece da boa educação e por isso se força a conversar com aquele homem, supostamente conhecido e querido em sua frente. Oma não parece falar com seu neto, mas com o neto de alguma amiga querida, algum rapaz conhecido mas não seu. Nesse encontro, Oma conversa com um homem, provavelmente seu filho, em alemão durante bastante tempo, deixando Michael de lado. Ele não entende alemão e ela não parece nem se dar conta de que língua fala ou que exclui alguém da conversa, está buscando conforto e o conhecido. Oma chora e Michael não entende o porquê: o pai dissera para ela rir e ela diz que não tem motivos para rir. Somente o pai, que, numa tentativa de resguardar a intimidade e vulnerabilidade de Oma, intervém e pede para que o filho pare de filmá-la, parece entender como a senhora está alheia e o peso que não ter motivo para rir tem nela. Quando estão indo embora no elevador, o pai briga: “podia se filmar um pouco também”.

          No terceiro dia, a música alta logo na entrada marca como ficar no apartamento com Oma, debilitada e alheia, é difícil e hostil. No minuto que entra no cômodo, Michael abaixa o volume da música. Nesse dia, ele tem de lembrá-la qual neto ele é, nesse dia ela está mais perdida, cansada e triste portanto ele não ousa desafiá-la: “no entiendo”. A visita seguinte repete o padrão da anterior, como Oma triste e distante. Ela parece reconhecer o espaço e o contexto em que está, mas não reconhece as pessoas, apesar de parecer que sabe que deveria conhecê-las. Ela confia.

          No quinto e último encontro, Oma lembra do momento do dia anterior que fora “fotografada” pelo neto e pede para que tirem mais fotos, mas o neto é rude e diz que é Daniel quem fará isso, não ele. Enquanto Oma se esforça para manter uma relação com o neto pedindo fotos e convidando-o para tomar café, ele já está exausto e avisa, ainda no começo da visita, que logo mais terá de ir embora. Ele quer ir embora e não quer decepcioná-la. Visitar alguém que não está mais lá é dolorido e cansativo.

          Na hora do café toda a incapacidade de Oma se expressar fica evidente. A mulher berra em seu ouvido, Oma não entende nem se faz entender, Michael tenta ajudar, “veja se faz ela entender porque já não sei mais” diz a mulher. Mate! Era mate e não café que Oma buscava. Estava certa e os outros não a entendiam. Ela se engasga de leve, sua fragilidade se escancara. Michael precisa voltar para o Brasil, Oma não entende e ainda assim o leva até a porta para se despedir com carinho.

          Cada um desses momentos é a representação mais sincera e precisa do convívio com uma pessoa doente e senil que já vi. Por isso, para mim, foi um filme necessário enquanto pessoa e enquanto neta de uma pessoa em situação similar a de Oma. Esse filme traduz mais que a relação que um neto, ou uma neta, podem ter com a avó senil. Traduz a dor, a incerteza e despreparo para se lidar com uma situação como essa. Vi em tela meus exatos sentimentos e pensamentos; vivi cada visita junto com Misha, vendo ali minha avó, tentando se localizar, ser gentil, me reconhecer; me vi nos incômodos e até mesmo raivas de Michael: a raiva pela música alta que evidencia a idade da avó, os avisos prévios de que se precisa ir embora como forma de autodefesa, pois é difícil ficar, a forma seca e mecânica que de repente nos vemos agindo para impedir que acreditemos que aquele amor desesperado e momentâneo de Oma pedindo para que o neto fique um pouco mais nos destrua, afinal, em poucos momentos Oma esquecerá, ficará entretida com alguma outra coisa. Somo nós quem levamos a memória e o peso. A morte é mais difícil para quem fica. Costumava pensar que quando tocar em minha avó em seu velório, eu teria mesma sensação que tenho hoje, com seus cabelos ralos, pele transparente e fina. Michael também parece enxergar sua avó assim.

           Oma não é um filme sobre a avó, sobre a relação entre os dois ou muito menos uma homenagem. Também não é um filme sobre alteridade nem sobre amor nem sobre reconhecer-se sem os olhos do outro, pelo menos não da forma poética como pode se fazer pensar. É um filme sobre dor. Um dor específica, que, ainda que extremamente bem representada, não é possível de ser explicada. Algumas dores não podem ser partilhadas e empatia não faz chegar nem perto da realidade.

          Nesse sentido, seu autor, Michael Wahrmann, é corajoso e, do fundo do meu coração, gostaria de poder olhar em seus olhos e agradecer por ter me permitido partilhar sua dor e assim poder, talvez, diminuir a minha. Ao mesmo tempo, porém, vejo Wahrmann como um enorme egoísta. Partilhou e aliviou sua dor, mas e Oma? Quem se preocupa com o que Oma sente além do pai? Michael não. Para ele, ela não está mais ali, já não inteira, já não tem mais a capacidade dos olhos nem da memória. Acredito que no caso de um filme como esse, é necessário se faça um julgamento íntimo, que julgue Misha alguém em situação semelhante, que sinta e tenha desejos semelhantes, pois só assim é possível entender de fato Oma.

          Sim, psicanaliticamente é um filme rico, que retrata a construção do eu a partir do outro; subjetivamente, explora tudo aquilo que Misha quer mostrar e nem sabe, mas é um filme egoísta e cruel e não porque é uma situação dolorida, mas porque esquece-se que Oma é uma pessoa por si só, que sua imagem importa, sua intimidade deve ser resguardada. Ninguém pergunta como ela se sente, se se sente só ou desamparada. E sabemos que está. Não, não há inversão de papéis, Oma não se torna menos frágil porque Michael expõe sua dor, ela não posa para foto nem encena tomar o chimarrão porque está no controle, faz isso porque não tem mais o que fazer, não sabe mais como agir. Nem tudo pode ser romantizado ou justificado porque se torna arte. Sem sombra de dúvida entendi melhor o que arte significa depois de assistir a Oma e também sem sombra de dúvida estou certa de que esse tipo de arte não farei. Não com a minha avó, não como desculpa de estar falando sobre mim. 


Aqui o link para assistir o filme. 

Fica a recomendação também do curta-metragem "Avós", disponível aqui.


Como sempre, com sinceridade, 

Lorenza





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