Sobre perder o medo do balé e da saudade

            No final do ano passado (2023), tive uma série de insights sobre a importância da prática artística na minha vida e como o CORPO tem papel fundamental nesse processo, o que me levou a colocar em prática meu desejo tremeluzente de voltar não só a dançar, mas de voltar ao balé clássico.

        Compartilho aqui a experiência arrebatadora, transformadora e curativa da aula "experimental" que fiz na F3 Estúdio de Dança, coordenada pelo incrível e gentil Felipe Ferreira, que conheci durante um trabalho no ano passado. 

               Antes da aula escrevi no caderno:

            "Hoje vou fazer uma aula de balé clássico. Estou bastante empolgada, mas um pouco ansiosa também, percebi durante a noite. Fico lembrando da escola de balé da minha adolescência e se vou ser inconveniente por precisar que passem as sequências para mim. A essa altura do ano, devem sabê-las de cor, o que lembro ser bastante estimulante.
        Estou curiosa para fazer balé com meu cabelo curtíssimo, que na época do balé chamávamos de "joãozinho" e só pensar nessa possibilidade já era inviável, já que não dá pra fazer o coque. Eu costumava cortar meu cabelo chanel em janeiro e deixar crescendo o restante do ano, para ter como prendê-lo direito na apresentação final. Mas estou levemente ansiosa por não ter as roupas 100% adequadas e - pasme - por minhas axilas não serem depiladas. Esses pensamentos e angústias me fizeram compreender como o balé realmente pode ser um espaço muito violento, em que mesmo eu, bastante padrão, corria/corro o risco de ter meu corpo reparado nos mínimos detalhes e constrangido." 

         Apesar do nervoso, fiz a aula e foi muito especial. Fiz a aula sozinha, o que me deixou mais tranquila e segura. Felipe, o professor, foi extremamente gentil, acolhedor e respeitoso, me deixando confortável com a vulnerabilidade que eu sentia naquele momento. Poder ser vulnerável na frente dos outros é muito precioso. 

        Há algum tempo desconfio que há uma sutil, mas importante, diferença de abordagem entre professores brancos e não-brancos (Felipe é um homem negro) e nesse dia tive a impressão de que isso é sim verdade. Felipe parecia ser totalmente consciente do que é uma adulta fazendo balé. Achei muito bonita a forma como ele domina a linguagem e a dinâmica - tão colonial - do balé clássico sem se render a ela, ou impô-la a outros corpos. Ele fazia pequenas adaptações nos exercícios para levar em consideração o meu corpo e meus limites - físicos e emocionais. Antes da aula, compartilhamos admiração e carinho por Milton Kennedy, professor que conheci no curso de Preparação Corporal da Escola de Dança de São Paulo (EDASP), em 2022, e que me enche os olhos d'água toda vez que penso nele, tamanha sua força, sensibilidade e inteligência. Milton também é um homem negro do balé.
            
        Foi bonito ir me situando, lembrando dos passos, das lógicas, me atrapalhando às vezes também. Percebi como meu corpo responde rápido, como realmente ele traz memórias. Fiquei emocionada por, 10 anos depois de parar o balé, chegar nessa aula em São Paulo - cidade que escolhi - por contatos que fiz no trabalho - que também escolhi.

    No alongamento, percebi nas minhas pernas, nos meus seios, no meu quadril e me emocionei em reparar nas mudanças no meu corpo através de um espelho de balé. Cheguei nessa aula adulta. Lembrei partes do meu corpo que há muito tempo não sentia, partes bem específicas como a planta do pé ou a lateral dos quadris. Balé é mesmo um trabalho de corpo intenso.

    Também ativei memórias muito guardadas, muito específicas. Um cansaço enorme quando cheguei em casa e Vitor estava aqui, pronto para me ouvir e acolher. O cansaço que eu sentia na casa da minha vó, depois de dias longos - apesar de não ter certeza se eram ou não dias de balé. Cansaço e acolhimento, vontade de ficar junto e aproveitar as pessoas que eu amo, frustração por serem poucas horas junto, a certeza do dia seguinte cheio de rotina. Chorei de empolgação, de alívio e principalmente de saudades da minha avó, minha maior entusiasta na dança. Fazer essa aula me fez perder o medo que eu guardava do balé, que por sua vez guardava o medo dessa saudade tão arrebatadora que sinto dela. 

   Vitor, como sempre, me acolheu muito nesse dia; me ouviu e me abraçou. Poder ser vulnerável na frente dos outros é muito precioso. Sinto por ele um amor e uma confiança tão puros como os que eu sentia na casa da minha avó. 

    Acessar esses medos me permitiu entendê-los, com sorte desconectá-los, para que eu não deixe de viver coisas que são importantes para mim porque me lembram coisas que me doem. Deixar doer sem sucumbir. Ter coragem para tentar de novo e sob novas perspectivas. Me senti muito corajosa nesse dia. Vamos ver a quais outras reflexões a dança vai me levar esse ano.

Como sempre, com sinceridade,
Lorenza




   
            

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