meu corpo traz memórias

Hoje vou falar da obra que é, sem dúvida, a mais importante e mais especial, pelo menos até agora. É uma obra que sintetiza muito de mim, que consolidou minha necessidade de estudo da autobiografia, que me fez revistar muitas e muitas coisas. Falo de "Meu corpo traz memórias", a intervenção de bordado em uma das minha antigas sapatilhas de balé. 

O Prelúdio

Fiz balé durante muitos anos: da primeira infância aos quinze anos e, mesmo agora, oito anos depois, esse ainda é um tema sensível. Parei o balé numa época meio "rebelde", comum da adolescência, quando me questionava sobre tudo e todos, sobre as instituições, as normas e por aí vai. Parei porque me percebi uma mercadoria naquela escola de classe média alta curitibana, que ditava um círculo social, um comportamento e uma forma de ver o balé. Só fui entender que a escola e o balé eram coisas diferentes muito tempo depois. Nem mesmo hoje esses limites são muito claros na minha cabeça. Foi nessa época também que minha avó, a grande entusiasta do balé, a pessoa que me levou a um milhão de espetáculos desde muito cedo, a que se emocionava com as apresentações, foi diagnosticada com Alzheimer e foi levada a Cascavel, onde temos familiares médicos, para iniciar seu tratamento. 

Pois bem, volta e meia eu pego minhas sapatilhas, coloco todas elas, faço um passo ou dois. Da última vez que isso aconteceu senti que não era pra guardá-las, que elas podiam ser ponte para alguma coisa. E eis que o Grupo Corpo lançou um workshop e depois um curso e eu voltei a dançar. Já tinha tentando dança contemporânea antes e, por mais que eu gostasse, era como se tivesse alguma coisa errada, justamente por não ser balé clássico. Mas dançar em casa, sozinha e sem espelho, no meio da quarentena foi outra coisa. Dancei sem as sapatilhas, enquanto elas me olhavam do sofá, me acompanhando, me amparando. Dancei e lembrei que danço bem, lembrei que a dança é natural pra mim, que faz parte da relação profunda que tenho com meu corpo. Dancei e percebi que dançar não doía mais tanto assim, que as feridas do balé, daquela escola e, até as feridas mais íntimas, podiam ser olhadas de outros lugares que não em sonho.

Admito que estou sendo um pouco poética - segundo minha irmã de oito anos, eu sou mesmo muito poética -, porque isso tudo aconteceu junto com a ideia de bordar em outros suportes que não o tecido e, quem sabe, bordar na sapatilha. 

Os ensaios

Em novembro decidi bordar nas sapatilhas. Escrevi várias frases, muito longas, sobre o que eu achava que era minha relação com o balé, mas na verdade era sobre minha mágoa com aquela escola e com a professora, sobre como eu achava que as pessoas viam o balé, com sua violências com os corpos femininos e a competitividade. E sim, tem muito disso, mas a minha relação com o balé também passa por outros lugares: tá aí a autobiografia. Fiz um primeiro teste que foi bem desanimador: usei uma agulha número 7 e tentei bordar em ponto hasta num tamanho muito pequeno, já que as frases eram longas. Não deu certo. 

O espetáculo

Depois de conviver meses com a sapatilha na sala, em janeiro, eu comprei uma agulha número 9, que é mais fina, e me pus a bordar. Usei dois fios na agulha e bordei tudo em ponto atrás, o que deu super certo. 



     Em cima do "A" na foto da direita, 
dá pra ver as marcas do primeiro teste.






Depois da primeira frase, percebi que com as novas ferramentas não só dava certo como o resultado parecia pele! Uma sutura, uma cicatrização na segunda pele que foi essa sapatilha. 

Organizei algumas frases num caderno, mas percebi que eu ia melhor sem muito planejamento, sentindo os temas e bordando aos poucos. No segundo pé, porque o espaço se tornou mais limitado, segui uma rota mais pré-planejada mas ainda assim bem livre. Bordei uma frase por dia durante três semanas. Entortei três agulhas e fiz alguns machucados nas mãos e nos cotovelos porque o couro da sapatilha é duro e exigia bastante força, além de deixar um aspecto grudento. 



Enquanto bordava, assisti a episódios de Hannah Montana. Sim, Hannah Montana. Eu amava a série quando era criança e quando comecei a fazer balé nessa tal escola, as aulas eram bem no horário do programa. Por incrível que pareça, o seriado teve um papel importante no processo dessa obra, me levando para lugares da minha infância e pré-adolescência em que o balé ainda era muito presente. 

Quando estava quase acabando, descobri outras obras que tratam de temas muito similares, o que me fez pensar que meu projeto tem ainda mais força do que eu tinha me dado conta. As Marcas que Carreguei, da Élle Bernardini, foi uma dessas obras.



O epílogo

A repercussão que Meu corpo traz memórias teve foi diferente de tudo que eu tinha vivido até então. Fiquei muito emocionada com o retorno das pessoas e com o sentimento que olhar pra sapatilha me causava - e ainda me causa. De vez em quando tenho saudades dela e a coloco na sala de novo, pra convivermos mais um pouco.

Essa obra amarra a Lorenza bailarina, com a bordadeira, a artista visual, a estudante de patrimônio e talvez até a diretora de arte. Conecta meu corpo, meus sonhos, minha mágoas e amores. 

Está bordado:

"Amor e Ódio";

"'Seis meses sem o balé é muito tempo'", frase que ouvi da minha professora quando disse que queria dar um tempo no balé, quem sabe seis meses;

"Quando paro ainda paro em primeira posição";

"Eu não fiz amigas lá";

"Balé tem cheiro de suor, pó facial, laquê e desta sapatilha", o cheiro da sapatilha, mesmo todos esses anos depois, é o mesmo;

"Meu quadril ainda dói"; 

"Quando ela deixou de ir às apresentações, parei de dançar", sobre minha avó;

"Eu amava me arrumar para as apresentações";

"Sonho que estou fazendo o coque e ele nunca fica preso o suficiente";

"Minha avó me deu todas as minhas sapatilhas de ponta".

nos elásticos,
"Minha mãe que costurou esse elástico",
"esse,"
"esse"
"e todos os outros."

E, dentro de cada pé da sapatilha, uma confissão:
"Sinto falta do balé".


Com muito carinho e sinceridade, 
Lorenza




















 


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